Bichos, luvas, direito de imagem e
direito de arena. Essas são apenas algumas das complexas questões
jurídicas desportivas que a justiça trabalhista vem enfrentando nos
tribunais. Por isso hoje no Brasil pululam cursos, palestras, seminários
e debates sobre legislação desportiva, revelando que esse ramo do
direito quer autonomia.
Exemplo
disso foi o que aconteceu em setembro passado, durante o IV Encontro
Nacional sobre Legislação Esportiva, realizado no Tribunal Superior do
Trabalho (TST), quando advogados, juízes, desembargadores, diretores e
especialistas se reuniram para discutir na área jurídico-desportiva
ideias e sugestões em razão da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de
2016. O Evento foi coordenado pelo ministro do TST, Guilherme Augusto
Caputo Bastos, e teve o objetivo de proporcionar a juristas,
especialistas da área desportiva e àqueles que intencionam atuar nesse
ramo do Direito melhor preparação e aprimoramento.
Para
o advogado Luiz Felipe Guimarães Santoro, Presidente do IBDD -
Instituto Brasileiro de Direito Desportivo e membro da Comissão de
Estudos Jurídico Desportivos do Ministério do Esporte, eventos como o
Encontro Nacional promovido pelo TST são fundamentais para o
desenvolvimento do Direito Desportivo brasileiro. "Temos Copa do Mundo e
Olimpíadas a caminho. O campo para os advogados se abrirá enormemente e
os profissionais que quiserem aproveitar as oportunidades deverão estar
devidamente capacitados.", ressaltou Santoro.
Contudo,
a realidade jurídico-trabalhista entre as entidades esportivas e os
atletas ainda é turva para a maioria da população. Ninguém sabe muito
bem como se dão essas relações trabalhistas. O que prevalece são
assuntos como cartolagem, bicho, luvas, tapetão e megasalários para
alguns jogadores, enquanto outras modalidades esportivas reclamam apoio,
buscam de patrocínios, bolsas e se submetem a treinamentos
escorchantes. Para alguns especialistas essa "monocultura" do futebol
leva outras modalidades à falta de investimentos, além de que criar
peculiaridades jurídicas indesejáveis dentro do direito desportivo, como
se este se limitasse à área de futebol, em detrimento dos demais
esportes.
Quanto
à lei, considera-se atleta profissional de todas as modalidades
desportivas aquele que recebe remuneração pactuada em contrato formal de
trabalho firmado com entidade de prática desportiva. Também se aplicam a
eles as normas gerais da legislação trabalhista e da seguridade social,
com exceção das peculiaridades da Lei Pelé (Lei 9.615/98)
ou integrantes do respectivo contrato de trabalho. Além disso, existe a
Justiça Desportiva (STJD e TJD), que cuida das infrações disciplinares e
das transgressões cometidas por jogadores, técnicos, massagistas,
dirigentes árbitros, etc.
Política desportiva
Muitas
das ações que chegam ao TST sobre direito esportivo são de atletas que
reivindicam vínculo de emprego com as entidades. Em março deste ano, a
Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho manteve decisão do TRT
da 3ª Região (MG), em ação movida por um jogador de handebol do Clube de
Regatas Vasco da Gama, que queria ver reconhecida sua condição de
atleta profissional. Para o TRT mineiro, a atividade econômica
preponderante do Vasco é o futebol, cuja atividade-fim é a contratação
de atletas dessa modalidade, e não a do autor da ação, já que o handebol
seria um esporte tipicamente amador. Nesses casos, a jurisprudência tem
entendido que estando ausentes requisitos caracterizadores da relação
empregatícia, como pagamento de determinada quantia, como decorrência da
atividade desenvolvida pelos jogadores, e subordinação jurídica, não há
vínculo empregatício.
A
mudança da mentalidade desta relação vem ganhando destaques diante das
discussões jurídicas sobre os aspectos trabalhistas e previdenciários.
Especialistas em direito desportivo defendem cada vez mais que o bom
funcionamento dos órgãos judicantes é fundamental para o desenvolvimento
do esporte brasileiro e para que haja maior equidade entre as
modalidades.
Aspectos legais
As
primeiras discussões em relação à Justiça Desportiva no país coincidem
com a criação da Justiça do Trabalho, em 1941. Nesse ano, o Decreto-lei
n° 3.199 instituiu o Conselho Nacional de Desportos, de âmbito nacional,
e os Conselhos Regionais de Desportos, de abrangência estadual. Em
1976, surge a Lei n° 6.354, a chamada Lei do Passe, dispondo sobre as
relações entre jogador profissional de futebol e clube. Com a
Constituição de 1988, artigo 217, firma-se o desporto como um direito de
cada um, cabendo ao Estado o fomento da prática desportiva, seja ela
fundada em normas e regras (prática formal) ou não.
Em
1993, foi a vez da Lei Zico (Lei 8.672/93), que propunha, entre outras
coisas, o fim da Lei do Passe, redefinir mecanismos fiscalizadores e
regulamentar as novas formas comerciais no futebol. Mas a lei sofreu
muita pressão das entidades desportivas e dirigentes, que pediam
principalmente a retirada do artigo que revogava a Lei do Passe. Para os
especialistas, o principal marco de mudança no cenário do esporte foi a
Lei 9.615/1998 (Lei Pelé), que substituiu Lei do Passe, e trouxe um
novo regime, com mecanismos de controle das agremiações, composição dos
tribunais desportivos e incentivo à profissionalização. As suas mais
recentes modificações, introduzidas pela Lei 12.395, aprofundaram ainda
mais os princípios ali contidos. Entre as modificações, a lei prevê a
responsabilização dos dirigentes por gestão temerária, a proteção dos
interesses das agremiações que investem em jovens atletas, proteção da
saúde dos atletas, cláusulas penais indenizatória e compensatória,
controle da atividade dos empresários, regulamentação formal de direitos
de imagem e de arena, entre outros aspectos. Hoje nos tribunais, por
exemplo, uma das questões mais discutidas no direito desportivo trata do
recebimento de valores a título de direito de arena e direito de
imagem. Embora digam respeito a todos os atletas profissionais, essas
matérias em sua maioria compõem conflitos entre clubes e jogadores de
futebol.
Regulado
pela Lei 9.615/98 (Lei Pelé), o direito de arena decorre de
participação do atleta nos valores obtidos pela entidade esportiva com a
venda da transmissão ou retransmissão dos jogos em que ele atua. Ou
seja, do montante negociado, a lei diz que o atleta tem direito a um
percentual, que deverá ser proporcionalmente rateado entre todos os
jogadores, inclusive os reservas. A doutrina e a jurisprudência
trabalhistas têm entendido que o valor pago a título de direito de arena
integra a remuneração do empregado e se equipara às gorjetas, uma vez
que é pago por terceiros, e não diretamente pelo empregado.
Outra
parcela é o direito de imagem. Esse representaria uma negociação livre
entre o atleta e o clube, um contrato particular, de natureza cível. É a
exploração da imagem do atleta, que não se confunde com relação
trabalhista dele com o clube, embora normalmente a intermediação entre
os atletas e os patrocinadores seja feita pelo clube.
Recentemente
o TST julgou o caso de um ex-jogador do Sport Club do Recife, João
Henrique de Andrade Amaral, mais conhecido como Andrade, que lutava para
receber do clube os valores referentes ao direito de imagem. O TST
reconheceu a natureza salarial do direito e julgou procedente o pedido
de diferenças pela integração dos valores pagos a título de direito de
imagem, conforme prevê o artigo 457 da CLT.
Um
dos casos de maior repercussão ultimamente foi o do jogador Ronaldinho
Gaúcho, que entrou na justiça para cobrar do clube rubro-negro mais de
R$ 40 milhões de vencimentos atrasados, parte da quantia referente aos
direitos de arena e de imagem.
"A CLT não cabe dentro da prática do futebol"
Supervalorização
do esporte, ídolos que são ao mesmo tempo atletas e vendedores de um
produto ou marca, luvas, bichos, multas milionárias e dano moral. Como
equacionar o direito desportivo trabalhista com a realidade da
exploração econômica do esporte. Como deve atuar a justiça trabalhista
no meio desse turbilhão?
Para
o ministro do TST, Guilherme Caputo Bastos, o futebol deveria ter uma
legislação própria: "A CLT não cabe na prática do futebol", afirma.
Bastos defende uma lei específica para a modalidade e diz que não
podemos fechar os olhos para a realidade. Leia a entrevista completa
amanhã no nosso site na segunda parte da matéria especial sobre direito
esportivo brasileiro.
(Ricardo Reis/AM)
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