O anúncio não dizia respeito a descoberta de uma super-reserva de petróleo, nem um aumento nos preços dos combustíveis.
Natalia Viri
Um
comunicado divulgado há duas semanas mudou drasticamente as
perspectivas para o balanço da Petrobras. Da noite para o dia, as
projeções de lucro no segundo trimestre subiram para R$ 5 bilhões,
contra a expectativa anterior de que a empresa fechasse o período no
zero a zero, sem lucro nem prejuízo.
O anúncio não dizia respeito a descoberta de uma super-reserva de
petróleo, nem um aumento nos preços dos combustíveis. Tratava-se apenas
de uma mudança nas regras contábeis adotadas pela companhia que,
sozinha, tem o poder de tirar cerca de R$ 7 bilhões em perdas
financeiras esperadas para o segundo trimestre.
Na quarta-feira, foi a vez da Braskem adotar o mesmo dispositivo
da Petrobras. Numa tacada só, o J.P. Morgan revisou a perspectiva para
as perdas da companhia no segundo trimestre, de R$ 1,2 bilhão para R$
200 milhões e afirmou que a empresa vai começar a distribuir dividendos
neste ano. A petroquímica é uma das coligadas da estatal, que tem uma
participação de 36% no capital.
O "sumiço" repentino de uma cifra bilionária das demonstrações de
resultados trouxe diversas críticas sobre o viés político da decisão.
Com lucro maior no curto prazo, os dividendos também aumentam,
beneficiando o governo, na posição de controlador da Petrobras, o que
fez com que as palavras "manobra contábil" e "contabilidade criativa" se
multiplicassem nos relatórios de análise de diversos bancos.
Mas apesar do efeito bastante conveniente para os acionistas no
curto prazo, especialistas ouvidos pelo Valor garantem que não há nenhum
passe de mágica ou truque na medida. O que a Petrobras fez foi adotar
um dispositivo previsto pelo pronunciamento contábil 38 (CPC 38) e ainda
pouco conhecido, que rege a chamada "contabilidade de hedge". O intuito
é reduzir o sobe-e-desce na última linha do balanço e trazer um retrato
mais claro da situação operacional da companhia nas demonstrações de
resultados.
Petrobras e Braskem vão utilizar parte da variação cambial sobre
sua dívida em moeda estrangeira como "proteção" para uma eventual queda
do câmbio em uma fatia de suas receitas previstas com exportação. Sem a
contabilidade de hedge, toda a dívida em moeda americana é corrigida
pela cotação do dólar: a diferença é contabilizada como ganho ou perda
financeira, ainda que a maior parte desse passivo vencerá apenas no
longo prazo.
Com o mecanismo, a variação cambial sobre parte dessa dívida é
"reservada" numa conta no patrimônio líquido e só passa para a
demonstração de resultados quando a receita que serve como contrapartida
é faturada. A Petrobras se inspirou na fabricante de alimentos BRF,
única empresa de grande porte adotar o mecanismo que contrapõe dívidas a
exportações no país. Segundo apurou o Valor , técnicos da estatal
consultaram a equipe financeira da companhia para entender melhor o
modelo.
O CPC 38 prevê diversas situações em que instrumentos de hedge
podem contar com uma contabilização especial. Mas, na maioria dos casos,
esses instrumentos envolvem derivativos. A única exceção, que permite a
utilização de um não derivativo, é para a proteção de um risco cambial.
"As empresas estão mais acostumadas a utilizar o CPC 38 para
contabilizar derivativos. Poucas ainda sabem ou tem segurança para
utilizar o dispositivo que autoriza o uso de dívida", afirma César
Ramos, autor do livro "Derivativos, riscos e estratégias de hedge" e
consultor de companhia que adotaram a prática, como a própria BRF.
Com o modelo, tanto Petrobras quanto Braskem se protegem de uma
eventual queda do dólar sobre a receita com exportações. Na prática, o
que as empresas fizeram foi "garantir" parte de sua receita operacional
no câmbio de maio - quando o dólar Ptax estava próximo dos R$ 2 -,
quando a operação foi designada.
Num exemplo hipotético (ver esquema ao lado), a empresa tem US$ 1
milhão em dívidas em dólar e US$ 1 milhão em receitas com exportação a
ser faturadas. Se o câmbio for a R$ 1,50, o "ganho" de R$ 500 mil com a
variação cambial sobre a dívida fica reservado no patrimônio líquido.
Quando a exportação for faturada, caso o câmbio se mantenha nesse
patamar, trará uma receita de R$ 1,5 milhão - menor que a esperada em
maio, portanto. A variação cambial sobre a dívida, que estava reservada
no patrimônio, no entanto, entra como um ganho na receita operacional,
que, no fim das contas, fica em R$ 2 milhões - travada, portanto, no
câmbio inicial de R$ 2.
Apesar da segurança de que parte da receita virá no câmbio
esperado e da redução da instabilidade, a estratégia é mais bem-sucedida
em termos de efeito no lucro no caso de queda no câmbio. Isso porque
ambas as companhias também tem custos em dólar, que não estão envolvidos
na operação.
Se o dólar cair, a receita ficará travada em R$ 2 milhões,
enquanto os custos serão contabilizados com a moeda americana mais
barata. O resultado é um número maior na última linha do balanço. Na
contramão, no caso de alta do dólar, o lucro contábil tende a diminuir,
já que os custos serão contabilizados por um câmbio maior do que parte
da receita.
Em sua estratégia, a Petrobras utilizará 70% de sua dívida para
proteger 20% de suas receitas com exportação dos próximos sete anos.
Fontes consultadas pela reportagem afirmaram que, apesar de dentro da
regra, o prazo é "ambicioso". "O normal é que as empresa tracem essa
operação para um horizonte de seis meses até dois anos", disse um
interlocutor. Ele reconhece, no entanto, que, com um horizonte maior
para as exportações, é possível envolver uma parte maior da dívida na
operação - o que tira uma fatia maior das perdas financeiras da
demonstração de resultados e melhora o lucro. Procurada, a Petrobras não
quis se pronunciar. A Braskem ainda não divulgou os percentuais
envolvidos em sua estratégia.
Política de gestão de riscos fraca explica baixa utilização
A falta de uma política de gestão de riscos e controles internos
adequados é o principal empecilho para uma adoção mais ampla da
contabilidade de hedge no Brasil, afirmam especialistas. Apesar do
benefício claro com a redução do "efeito sanfona" no lucro líquido, a
utilização da norma ainda engatinha entre as empresas não financeiras.
Diversas companhias, inclusive a Braskem e a Petrobras, já adotam o mecanismo para minimizar a oscilação causada por alguns derivativos que protegem
contratos de câmbio, juros e commodities. Mas a utilização ainda é
considerada tímida quando comparada com a Europa e os Estados Unidos.
"A contabilidade de hedge é opcional, mas a empresa não adota só
porque quer. Pelas regras, é como se tivesse que fazer por merecer",
afirma Fernando Galdi, professor da Fipecafi e da Fucape. A adoção da
medida implica uma documentação rígida da estratégia adotada e dos
riscos assumidos. E nem sempre as empresas tem rotinas preparadas para
fazer frente à essa exigência.
Segundo o consultor César Ramos, na maior parte das vezes, há
necessidade de estabelecimento de novas rotinas de controles internos - o
que, em um implica em novos custos, que nem as companhias nem sempre
estão dispostas a assumir. "O problema é que a maior parte das empresas
ainda tem dificuldade em enxergar o retorno desse investimento",
ressalta.
Desde a crise de 2008, quando diversas empresas tiveram perdas
bilionárias com derivativos, o aprimoramento da gestão de riscos é
considerado um ponto crucial para as companhias abertas brasileiras.
"Hoje, muitas empresas se limitam a fazer uma descrição burocrática de
como elas lidam com os riscos, apenas para atender aos itens que são
exigidos nas divulgações por parte do regulador. A contabilidade de
hedge exige que essa política seja mais pragmática e próxima das
decisões práticas", explica Galdi, da Fipecafi.
Entre a longa documentação exigida pela contabilidade de hedge,
está o estabelecimento de rotinas de avaliação de riscos e limites de
exposição a determinados instrumentos financeiros, além de testes de
eficácia da estratégia adotada, tanto de forma retroativa quanto de
forma prospectiva. A empresa pode deixar de adotar a prática, mas tem de
documentar para auditores e para o regulador que a decisão foi tomada
olhando-se para a frente, e não ao sabor das oscilações do mercado.
Aos poucos, no entanto, o interesse pela medida tem aumentado. De
acordo com Rogério Lopes Mota, sócio de auditoria da Deloitte, em
momentos de maior instabilidade do mercado, como o atual, a demanda de
clientes por esclarecimentos em relação à contabilidade de hedge cresce.
E a adoção mais agressiva por empresas de grande porte e
visibilidade, como a Petrobras tende a colocar a prática nos holofotes.
"Nossa experiência mostra que a adoção de práticas contábeis por
empresas que tem mais visibilidade costuma ser uma espécie de guia para o
mercado", diz o auditor.
Galdi, da Fipecafi, também afirma que a procura por seus cursos
sobre o assunto tem crescido nos últimos anos e atraído um público mais
diverso, para além das áreas de controladoria. Uma circular do Banco
Central autorizou a contabilidade de hedge para instituições financeiras
em 2002. Mas para as empresas não financeiras, a norma só passou a
valer em 2009, dez anos após de ter chegado aos Estados Unidos. "Nos
primeiros anos após a circular, pouquíssimas empresas a utilizavam.
Hoje, a adesão entre bancos é comum. O mesmo tende a acontecer para
empresas não financeiras", afirma.
Fonte: Valor Econômico